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Primeira data: 27 de Novembro de 2011. O Fado é distinguido, internacionalmente e de pleno direito, como “património imaterial da Humanidade”. Três anos depois, a 27 de Novembro de 2014, a música portuguesa repete o feito, girando o foco do mérito na direcção do cante alentejano. Mais do que curioso, muito mais do que circunstancial, torna-se significativo perceber que, muitas luas antes desses sinais de justo reconhecimento, já havia um homem a traçar um peregrino equilíbrio entre estes dois mundos com identidades próprias, grandezas semelhantes, percursos paralelos e, também, afinidades por descobrir: António Zambujo. Importa, desde já, afixar uma ressalva: nunca Zambujo se sentou comodamente no meio de uma qualquer ponte que ligue as duas escolas musicais, nunca procurou construir uma passagem artificial e enganadora entre estes dois universos que, manifesta e exemplarmente, o estimulam e lhe servem de bases. Bem pelo contrário, adopta como método de trabalho a aventura da inquietação, que lhe permite atravessar de margem a margem, sem sobressaltos mas sem adormecimentos, dando corpo à ideia de que não se pode fugir a um destino, mas pode sempre tentar-se a sua sistemática ultrapassagem e o seu crescimento para novas realidades. Como acontece com este cantor, cada vez mais indiferente às fronteiras e às balizas.
António Zambujo nasceu em Beja, Alentejo, a 19 de Setembro de 1975. Por inerência familiar e geográfica, cresceu a ouvir a gravitas do cante alentejano. Sabe-se, também, que, ainda pequeno, se deslumbrou com as grandes vozes fadistas, Amália Rodrigues à cabeça, mas trazendo à ilharga Maria Teresa de Noronha, Alfredo Marceneiro ou Max. Dispôs de uma feliz infância musical – começou a estudar clarinete com apenas oito anos – e de uma adolescência activa neste campo – cantando en família ou ganhando um concurso destinado a jovens fadistas, quando tinha 16 anos –, até que aportou a Lisboa, numa decisão de risco que ajudou a moldar-lhe o futuro. Em dois passos, fez-se amadurecer: no primeiro, pela mão do guitarrista e compositor Mário Pacheco, conheceu em regime diário (ou nocturno, se preferirem) os bastidores e os segredos do universo fadista, juntando-se ao elenco do Clube do Fado. No segundo, desbastou as inseguranças e os truques do palco, como um dos escolhidos por Filipe La Féria para o musical Amália, em cena durante quatro anos; António era nem mais nem menos do que Francisco Cruz, o primeiro marido de Amália.
Os capítulos de estreia em gravações próprias reafirmam o que atrás se disse: em 2002, publica O Mesmo Fado, já com composições por si desenhadas, fados de reportórios clássicos, contactos firmados com autores de primeira linha. Depois, em 2004, vira-se a Sul, debruçando-se sobre o Cancioneiro de Beja e dando novas cores à sementeira alentejana, já em comunhão aberta com o Fado, em que persiste – e persistirá – em casar a melhor memória com a novidade de eleição. O segundo álbum chama-se Por Meu Cante, e os dois títulos sublinham o cruzamento que atrás se referiu – e que nunca foi uma encruzilhada. Assumem uma impressionante regularidade os seus concertos no estrangeiro (só nesse ano, deixa a sua impressão digital em Paris, Toronto, Santander, Sarajevo ou Zagreb, para referir alguns exemplos). O segundo álbum contribuirá ainda, de forma decisiva, para novo prémio, o de Melhor Intérprete Masculino de Fado, atribuído pela Fundação Amália Rodrigues. Torna-se “embaixador” da Música Portuguesa, representando-a em festivais internacionais (caso do Atlantic Waves, em Londres). Participa de uma homenagem especial a Alain Oulman, um dos grandes fornecedores de Amália, na Festa do Avante!.
Com uma cadência certa e segura, António Zambujo vai disseminando os seus talentos – assim se explica, por exemplo,a presença de um grupo (Angelite) de Vozes Búlgaras no seu terceiro álbum, Outro Sentido, publicado em 2007. O disco permite ao cantor de Beja edições na Europa e nos Estados Unidos e, em simultâneo, o direito a reclamar um lugar autónomo e eleito no planeta da world music, salvaguarda para muitos dos que, em diferentes latitudes, ousam a diferença, que pode passar sobretudo pela autenticidade, como é o caso. Com o álbum, lançado no selo World Village da editora Harmonia Mundi, e com as suas constantes viagens, Zambujo conquista novas praças-fortes de divulgação, nomeadamente a francesa (Outro Sentido esteve colocado no topo de vendas da poderosa cadeia FNAC). Outra “excursão” altamente compensadora leva-o ao Brasil, com valiosas colaborações (Ivan Lins, Roberta Sá, Zé Renato) e com aplausos insuspeitos e entusiásticos (com destaque para a declaração de Caetano Veloso: “Quero ouvir mais, mais vezes, mais fundo (…) É de arrepiar e fazer chorar”.
Nesse Outro Sentido, dava-se largas à paixão pela música chegada do Brasil, especialmente aquela que parecia vir do fundo dos tempos (Vinicius de Moraes). Essa tendência para a travessia do Atlântico, mantida até hoje, aprofunda-se em Guia, álbum lançado em 2010, com a inclusão de temas assinada por novos valores brasileiros como Rodrigo Maranhão, Márcio Faraco ou Pierre Aderne, mas de igual forma com a solidificação de um núcleo admirável de contribuintes nacionais para a excelência do tesouro depositado na voz de António Zambujo – os poemas de Aldina Duarte, Maria do Rosário Pedreira, José Eduardo Agualusa, João Monge, as canções de Miguel Araújo. Esta lista chega para tornar transparente o crescimento “uniformemente acelerado” de António Zambujo, cujo reconhecimento e popularidade conduzem a espectáculos em países tão improváveis como Dinamarca (o seu concerto na Womex2010 deu direito a um programa de televisão exibido no prestigiado canal de televisão Mezzo), Noruega, Azerbaijão, Israel ou Bulgária. O seu trabalho vai sendo aplaudido pela crítica nacional (Blitz, Ípsilon/Público, Jornal de Letras) e internacional (revista Mondomix em França, revista Songlines em Inglaterra). Em paralelo, Zambujo confirma-se como valor acrescentado em festivais em Portugal (o Med de Loulé e Sines) e no estrangeiro (os franceses Chateauvallon e Nuits de Fourvière, respectivamente em Toulon e Lyon).
Quando chega Quinto, já o artista faz convergir em pleno o carinho, o aplauso e o entusiasmo de um público que sabe bem como distinguir o simples do simplista, o popular do popularucho, o calmo do nulo, o genuíno do fabricado. Canções como Lambreta ou Flagrante partem resolutamente para o “domínio público”, ao mesmo tempo que o seu intérprete é desafiado para duetos, colaborações, composições e autorias c cedidas a terceiros. Zambujo passa a situar-se numa das raras vagas para os que são vistos como medida-padrão, faz questão de deixar gravado um dos seus enormes encontros com o público em sala mágica (Lisboa, 22:38 – Ao Vivo No Coliseu), alinha ao lado de Ana Moura numa série de espectáculos que muitos não conseguirão – nem quererão – esquecer.
Vem, mais recentemente, outra jornada que vai parar à Rua da Emenda. Um disco que ora é viela estreita para amores arraçados de fadista, ora se transforma em avenida larga para escalas que trazem todo o mundo (Brasil, França, Uruguai, África) para a dimensão maior de um artista português. Dispensa os condicionamentos de trânsito, porque, guiados pelo sinaleiro que canta, todos têm lugar, sem problemas de estacionamento: aos lugares reservados para os colaboradores habituais, somam-se espaços novos e amplos para quem chega e é recebido em festa, casos de Samuel Úria e José Fialho Gouveia. As geografias ajustam-se à dimensão desta rua onde, num ápice, cabem os talentos imortais de Noel Rosa ou de Serge Gainsbourg, lado a lado com os nossos contemporâneos Jorge Drexler, Rodrigo Maranhão ou Pedro Luís. Prova de que esta Rua da Emenda é, afinal, uma rua do mundo. Generosa, coerente, variada e fascinante, como só acontece com aquilo que é tangente às nossas vidas.
Em 2015 António Zambujo voltou sem medo onde já foi feliz: aos palcos. Começou o ano em Paris, onde deu 13 concertos em 12 dias e chegou ao nº1 do top de World Music do iTunes francês. Mais tarde, e depois de 3 noites entre os Coliseus do Porto e Lisboa, foi agraciado com dois Globos de Ouro para Melhor Intérprete Individual e Melhor Música, com “Pica do 7”. Em Junho seria condecorado pelo Presidente da República com a comenda de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.
Continua numa intensa digressão, nacional e internacional, com mais de 100 concertos já agendados para o ano de 2016. São noites em que nos sentimos convocados a agradecer-lhe todos estes anos, todas estas canções, todos estes momentos em que a sua voz foi o espelho, necessariamente melhorado, das nossas próprias vozes. E lá estaremos, ao lado de quem nos chama, sem nunca nos gritar.
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